quarta-feira, 23 de maio de 2007

Disco: Bordado - Rodrigo Maranhão

Geografia musical da delicadeza perdida

Bordado (MP, B / Universal), primeiro disco solo de Rodrigo Maranhão, é uma viagem pela riqueza das tradições regionais da música brasileira reprocessadas pela linguagem poético-musical do compositor carioca. Estão lá o samba, restabelecendo a ponte original entre o Rio e a Bahia, agora no sentido inverso, o baião, o xote, a ciranda e o coco nordestinos, e até a milonga gauchesca. Nunca, porém, aferrados às suas formas clássicas. As 11 músicas reunidas no disco compõem uma obra coesa pela hibridização de diferentes gêneros na unidade de cada canção. Rodrigo Maranhão imerge na tradição para atualizá-la e recolocá-la em movimento.

“Bordado” parte do litoral, revisitando as canções praieiras de Dorival Caymmi, gênero inaugurado e encerrado na obra do compositor baiano. Os personagens são os mesmos. Há o pescador dividido entre suas duas paixões, sempre a navegar por sobre a amplidão do mar para no fim desaguar nos olhos do seu bem. O pescado à mesa, temperado por aquela que inspira em seu coração sonhador “uma canção maior”, oceânica. Como único acompanhamento à voz, o violão, emulando o ir e vir da ondulação, embalando a amada ao sabor das marés. Porém, o cenário não é exatamente o mesmo, não se trata de uma vila de pescadores baiana. Está mais para uma praia deserta a meio caminho entre o Rio de Janeiro e o Ceará, terreno onde, só, Rodrigo Maranhão finca a bandeira da musicalidade que lhe é peculiar.

Em seguida, a embarcação do compositor solitário toma o rumo do continente navegando contra a correnteza rumo ao “Interior” “da rinha de galo, do café na panela, das noites de lua, das noites de breu”. O violão recebe o acompanhamento da viola caipira de dez cordas de Marcello Gonçalves, integrante do Trio Madeira Brasil. A marcação do triângulo, “a chuva na serra” e “o espinho do mato machucando o gibão” não permitem que o ouvinte se situe na trilha percorrida pelas composições de Rodrigo Maranhão. Sua obra não tem guias, é um convite à divagação.

Sob o luar do sertão, “Olho de Boi” é um enigma que oferece respostas cifradas: “o que não falei sim, tudo que cantei sou”. Carrega a tristeza de um canto de trabalho, como fosse um aboio cantado em versos: “olho de ajudar boi, rezo pelo popular; reza pra cantar boi, canto pra purificar”. Mas também pode ser apenas um lamento sertanejo cuja poética se constrói em função da melodia.

O Nordeste se estende ao Rio Grande do Sul em “Milonga”. A lírica circular se constrói a partir de negações recorrentes que insistem em afirmar que nem tudo é o que parece. Assim como o vanerão gaúcho pertence à mesma família do xote nordestino, a milonga de Rodrigo Maranhão ecoa pelo sertão. Acelerada, com o acompanhamento de triângulo e zabumba, bem poderia se transformar num baião.

Pelo xote chegamos ao Rio de Janeiro, anuncia o acordeão de Marcelo Caldi, tal qual Luiz Gonzaga fez no passado, abandonando a terra natal, com “muita fé e pouco dinheiro”, para tentar a sorte na antiga capital. “O Osso” não dissimula sua raiz nordestina, mas tergiversa na malemolência. Em seu ritmo lento, abre espaço para a ginga e o jogo de cintura do carioca rubro-negro. Uma vez no Rio de Janeiro, ele exorta: “moçada carrega o batuque, no berço do samba deixa o couro cantar”. Sim, mas sem pandeiro, surdo, repique, reco-reco e tamborim. “Pra Tocar na Rádio” é um samba de linhagem baiana, cadenciado, em que a divisão rítmica se organiza exclusivamente através do violão, tocado ao estilo de João Gilberto, com quem os improvisos vocais no fim da canção estreitam ainda mais os laços. Rodrigo Maranhão manteve guardado seu espírito carnavalesco de mestre de bateria e puxador do Bloco do Banga para o desfile do ano que vem. A outra incursão pelo universo do samba presente no disco é ainda mais direta. “Recado” foi gravada a capela. A simplicidade do arranjo fazendo contraponto à banca de seu interlocutor, uma celebridade instantânea que se afasta de suas origens ao optar pelo esbanjamento e o acúmulo de bens materiais.

“Baião Digital” também marca a posição do compositor em relação aos hábitos e à cultura típicos da pós-modernidade. Por um lado, não se trata exatamente de um baião à moda antiga, ao contrário do que poderia sugerir o título. O ritmo marcado na palma da mão e o violão de 7 cordas tocado com vigor percussivo por Marcello Gonçalves remetem à música ritual e às brincadeiras de terreiro. A referência ao digital aborda o deslocamento da esfera real para um universo virtual em que se depende de máquinas para mediar o relacionamento entre as pessoas, mantendo qualquer um acessível em todos os lugares. A música de Rodrigo Maranhão transita por paragens diversas sem que ele precise sair do seu lugar ou se distanciar de suas raízes em nome de uma suposta modernidade contemporânea.

Esta linha reflexiva atinge o ápice e a síntese na melancólica “Noites de Irã”, um canto aos escravos da globalização – os irmãos subjugados em suas existências miseráveis cuja cultura é ignorada pelos ideais supostamente democráticos do “grande irmão” que ninguém quis, o autodeterminado juiz de última instância, imune a julgamentos. Sobre o batuque dos tambores de origem africana, a coda ecoa o lamento triste de um compositor consciente do lugar que lhe cabe no latifúndio global, resistente à ilusão de “viver de mentira o sonho de um outro país”. “Cresço para bem servir-te, ó pátria-amada”, anuncia, ao som de berimbau e agogô no samba de roda “Todo Dia” para em seguida completar: “eu não queria me calar ó mãe, minha mãe”. A ele se junta em coro múltiplo a cantora Elizah, reunindo o canto ancestral de todas as gerações em uma só voz.

Navegando sobre o encontro de coco, ciranda e baião, “a barca segue seu rumo lenta” de volta à origem. O retorno à casa paterna e aos “olhos da morena bonita”, aquela mesma que assistiu à partida em “Bordado”, lá no começo, após a viagem a qual somos conduzidos em apenas meia hora. O último canto das águas renova o primeiro grande sucesso do compositor – na interpretação de Maria Rita – em uma versão que valoriza o acento regional marcado pelo ritmo da zabumba. Em “Caminho das Águas”, Rodrigo Maranhão trança o último fio de linha da sua poesia sobre o fundo musical das tradições brasileiras, redesenhando em seu “caminho bordado a fé” a geografia musical do país da delicadeza perdida. O Brasil do encontro festivo de diferentes raças, credos e culturas se faz redivivo em suas canções.


Assista a "Caminho das Águas" no show de lançamento do disco Bordado na Tuba do Pindzim.
Veja mais informações sobre o show aqui.

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